cartografia do irrelevo (II)

 

Messidor, Alain Tanner, 1979

 

technique

 
 
das mídias, a mídia
do corpo, a maneira
do sentido, o rastro

 

me falam “olhar”, e eu digo: encontrar o gesto;
me falam “espelho”, e eu digo: isolar o gesto;
me falam “representação”, e eu digo: libertar o gesto.

 
 


La mode rêvée, Marcel L’Herbier, 1939

 
 

*

 
 

Bresson uma vez disse que um conjunto de boas imagens pode ser desprezível, mas também não disse quanto mede o homem que encolheu de Jack Arnold, quanto dura L’éternité de Rimbaud ou a distância entre a maçaneta do carro e a mão de Meryl Streep em Pontes de Madison, que é exatamente o intervalo de tempo necessário para uma linha de horizonte de Ford preencher a tela e atualizar um filme inteiro, como toda vingança de uma “boa imagem” condenada ao desprezo.

uma superposição, um primeiríssimo plano e a fronteira entre fogo e artifício se apaga: o natural é uma questão de olhar, de zoom, e é basicamente por isso que Foudre só precisa de um átimo para nos retraduzir que um filme/etc não existe se não te faz pisar em falso. sempre que desconfiar de uma (boa) imagem, tenha em mente uma coisa: a bicha é rancorosa.

 
 

Foudre, Carmen Jaquier, 2022

 
 

*

 
 

Ladyworld, Amanda Kramer, 2018

 
 

por mais que a lembrança de que Schefer num belo e distante dia falou em filmes como arte do aparece/desaparece ainda faça alguém pensar no acende-apaga de Kubelka como candidato a exemplo perfeito, essa chave de duas posições está antes entranhada num dos grandes equívocos já cometidos pela cultura do cânone no último século, operando menos como práxis do que como uma espécie de paradigma.

ora, se Ozu ainda é um dos poucos exemplos que trafegam inabaláveis, resistindo às mais variadas tentativas de classificação em uma eventual tapeçaria da história do audiovisual, isso se dá menos por algum mistério-oculto-cinema-transcendental do que por um fato bem simples: sua maior virtude era na verdade a negação mesma daquilo que lhe é atribuído (ainda) como melhor qualidade.

não é o “caché baziniano”, é a gata doente de The Sick Kitten (George Smith, 1903).
não é o “espaço off”, é o primeiro plano.
não é “esconder para mostrar”, é mostrar para esconder, esgotar o visível.
não é Ladyworld, é Teenagers.
não é “Ozu”, é Ozu.
é (des)aparecer.
 
 
Teenagers, Dinara Asanova, 1983

 
 

*

 
 


Celles qui s’en font, Germaine Dulac, 1928

 

onda
enésima vaga (*.wav)

 

CLAUDE:
Um cineasta só merece esse nome a partir do momento em que sabe o que está fazendo.

ROBERT:
Esqueça que está fazendo um filme. Quando você não sabe o que está fazendo e o que você está fazendo é o melhor – isso é inspiração.

JACQUES:
[levanta e sai da sala]

TRUFFAUT:
O pior filme de um autor é sempre mais interessante que o melhor filme de um não-autor.

FRANÇOIS:
Nas malhas dessa rede, que pesca não seria milagrosa?

 
 

Fresh Kill, Shu Lea Cheang, 1994

 
 

*

 
 


Deixem-nos descobrir como ver, como olhar, como sentir.
Para ter algo a dizer e olhos abertos não a reflexos, mas à vida em si.
Deixem-nos olhar-nos, encontrar-nos.

(G. Dulac)

 
 


Mala Noche, Gus Van Sant, 1986

 
 

*

 
 

exaurir
e construir

(o gesto)

 
 

Safer Sexual Techniques in the Age of Mechanical Reproduction, Michelle Handel, 1986

 
 

*

 
 

ainda na década passada (numa era bem mais otimista) escrevi sobre a (im)possibilidade do famigerado encontro entre “cinema” e História e suas implicações; entre muitas dívidas e algumas promessas, era basicamente mais uma vez a espiral macabra do “não há contar sem história, nem História sem contar”. ok, muito bonito, existe essa tensão, sempre existiu. então vou pegar ela no colo, dar muito carinho, e mudar a pergunta: se dela não se escapa, como acessá-la?

pois só há um território neste planeta cujo nascimento do movimento das imagens se deu explícita e deliberadamente apenas em função de um deslocamento visível no plano histórico/político: a Colômbia. lá não há imagem que não seja assombrada pela reencenação do fuzilamento em praça pública das quatro pessoas que tentaram executar o presidente/general Reyes em 1906. se o cinema é uma fisgada de mundo na fluidez dos novos dispositivos, em Medellín a força gravitacional tem seu caso-limite: Theo Montoya simplesmente não conseguiu filmar Anhell69. este homônimo nada mais é que a materialização de uma impossibilidade, a autodeclarada “espectrofilia” das protagonistas de um filme que não pôde existir; uma vertigem, uma guinada, um momento tornado tátil desde a panorâmica de Virgem a Britney no quarto de Theo que abre o filme, assim como a de Chantal em La Chambre.

talvez não seja exatamente o que eu quero ver hoje, mas, voltando ao “acessar”, do latim accessus: “aproximação, entrada; ataque de uma doença”. penetração, uma picada? acho que foi isso. não, nunca foi sobre cura.

 
 

Anhell69, Theo Montoya, 2022

 
 

*

 
 

Virgin Machine, Monika Treut, 1988

 
 
ontologia
 
 
toda ininteligência
é natural

 
 

The Wood Nymphs, autoria desconhecida, c. 1930

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