cartografia do irrelevo (I)

 

Totally Fucked Up, Gregg Araki, 1993

 
 

uma

 
 

é “mulher inseto”, a outra é “garota da escuridão”, e a beleza toda disso é que, apesar de chegar no mesmo lugar que talvez só Imamura tenha conseguido alcançar naquele contexto do pós-guerra, o filme da Tanaka vai até lá de trás pra frente, ou melhor, subindo a mesma ladeira que o primeiro desceu, e com o peso de setenta mundos nas costas, as mesmas que já foram de Ruan Lingyu na sua cena mais famosa.

rachar a estrutura, dar à luz o colapso; fazer igual ou mais com nada na manga exceto meia dúzia de códigos do melodrama acoplados a uma demanda clássica, eu poderia propor. a metáfora é provocante, como sempre. mas não, não é isso, tudo aqui é basicamente uma questão de gravidade, massa vezes aceleração, a maior das seduções: “entregue seu corpo somente a quem possa carregar”. obg, Linn, obg, Kinuyo.

 

A Mulher Inseto, Shohei Imamura, 1963 + Girl of Dark, Kinuyo Tanaka, 1961

 
 

*

 
 

é interessante como o fenômeno da recepção de um trabalho ao mesmo tempo “velho e novo” pode servir como laboratório por excelência de alguns sintomas, afinal, é o terreno do cronicamente anacrônico, da ponta solta, do não aparado, e é esse relevo do rastro que me interessa.

sim, um “filme lésbico” (?) realizado no início dos anos 80 (afternoon breezes, hitoshi yasaki) pode ser enfadonhamente reacionário. digo isso tal qual bazin diria que toda ervilha enlatada é um objeto “ontologicamente” conservador, tirando da manga seu curinga favorito. mais, olha que curioso: pela via inversa aqui as principais correntes da água-de-pneu-velho que habita as bandas & bolhas do que se entende por “gostar de cinema” hoje provam sua obsolescência numa paulada só, morrendo abraçadas na textura de um desenquadramento rarefeito com banda sonora autônoma filmado em 16mm urgentes et necessários. em comum, as mesmas lágrimas de sangue cujo pacto místico só poderia ter como clímax a apoteose redentora de um ventre replicante coberto por esperma e pétalas de rosa. após uma odisseia de torneiras pingando numa verborragia surda de elipses e obsedâncias de muito sofrimento, finalmente a cor surge na tela. “não é sangue, é vermelho”, disse deleuze que disse godard. ah, agora faz sentido: o grão mais uma vez se sacraliza.

benjamin estaria surpreso se hoje estivesse aqui ao perceber que a “aura” nunca foi embora, só mudou de endereço. mais ainda estaria barbara hammer, tentando explicar por que faria nada menos que o inverso: como admirar um taxidermista quando se está justamente atrás do ataque, do impulso, do bote?

  

Afternoon Breezes, Hitoshi Yasaki, 1981 + Sisters, Barbara Hammer, 1974

 
 

*

 
 

morreu o Rozier.

tire todo o “Truffaut” de Jules & Jim, todo o “Godard” de Viver a Vida, todo o “Rivette” de Paris nos Pertence, o “Chabrol” de Les bonnes femmes, o “Rohmer” de O Signo de Leão e o resultado são cinco vezes Adieu Philippine, lindo que dói justamente porque é tudo aquilo que ninguém pôde tomar dele: ser um estrato bruto de memória, imanente, tátil, sublimemente expirado; só ele venceu.

ainda bem, são esses que contam a(s) história(s), como alguém já disse.

 

Adieu Philippine, Jacques Rozier, 1960

 
 

*

 
 

She’d always been there
       occupying the same room.
It was only when I looked
               at the edges of things
my eyes going wide watering,
              objects blurring.
Where before there’d only been empty space
                I sensed layers and layers,
felt the air in the room thicken.
              Behind my eyelids a white flash
a thin noise.
              That’s when I could see her.

(gloria anzaldúa)

 

for my crushed right eye, Toshio Matsumoto, 1967

 
 

*

 
 

BLOW THE NIGHT! let’s spend the night together, Chûsei Sone, 1983

 

rebarba, cavaco, resíduo… contar é cortar, mas o que eu quero é tropeçar no que se descarta, me estranhar com o avesso de uma intenção; 2h do que teria sobrado de uma mesa de montagem qualquer, uma cápsula errante de antiurgência enterrada no pátio do depois, enunciação que se basta: “cadê o loló?”, a própria definição de necessidade. “fuller filmava com os pés”, “antonioni filmava as aspas”, dizem as escrituras. hoje eu quero é ver o ralo.

 
 

*

 
 

Scarlet Diva, Asia Argento, 2000

 

i get paid to
wait around between shots

(sharon mitchell)

 

The Doll’s Revenge, Lewin Fitzhamon, 1907

 
 
 
 

(para Kenneth, avec Anger)

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