um dia na vida

 

 

“A curiosidade do homem ultrapassa o alcance dos sentidos. Embora a nossa vitória sobre o tempo e o espaço represente um enriquecimento impressionante do mundo perceptivo, favorece também o culto da estimulação sensorial que caracteriza a atitude cultural do nosso tempo. O gosto pelo tosco, o gosto pelo espirituoso (que são a mesma coisa), existiram em outros tempos? Admiremos também com que rapidez entramos na via do progresso – entendo por progresso a progressiva desaparição da alma e o progressivo domínio da matéria – e que propagação maravilhosa se faz todos os dias da habilidade ordinária. O gosto exclusivo pelo verdadeiro oprime e sufoca o gosto pelo Belo.

A real questão seria saber se as forças que transformam o mundo são as mesmas forças que transformam as artes, como uma alimenta a outra, a menos que sejam contraditórias. Nestes dias deploráveis, produziu-se uma nova indústria que muito contribuirá para confirmar a idiotice da fé que nela se tem, e para arruinar o que poderia restar de divino. Ao mesmo tempo que damos ao homem uma imagem muito mais completa e exata de seu mundo do que no passado, limitamos também a atividade de raciocínio. Orgulhosos do seu direito a ver tudo, podem sentir uma grande satisfação, como aquelas intrépidas solteironas inglesas que após uma volta ao mundo voltam resignadamente à estação dos caminhos de ferro da sua vila com o mesmo estado de espírito com que partiram. Em nome do entretenimento, é essencialmente devoção à perpetuação e adulação das emoções mais ordinárias, e dos desejos mais baixos.

Na cultura em que vivemos nos ensinam relativamente pouca coisa. O mundo atual é um pobre ator, apresenta seu exterior, mas sua natureza não sobressai imediatamente aos olhos e ouvidos. Nosso público, que é particularmente incapaz de sentir a felicidade da fantasia e da admiração (um sintoma das almas pequenas) quer ser surpreendido por meios estranhos à arte. O público é incapaz de se extasiar diante da verdadeira arte. Estou hesitante em usar as palavras “entorpecimento” e “alienação”.

Fui influenciado por poesia contemporânea, e meus gostos musicais com mais frequência me levam a artistas à margem das margens, sem falar minhas convicções estéticas, filosóficas e políticas, que são minoria na minha geração. O amor pela obscenidade não deixou escapar tão bela ocasião para se satisfazer. Que uma tão estúpida conspiração, dentro da qual, como em todas as outras, encontram-se os perversos e os equivocados, possa vencer de maneira absoluta, eu não acredito, ou pelo menos não gostaria de acreditar.

Perguntado sobre o que seria útil ou estimulante além do que aprendi, minha resposta é brutal: nada. A fim de compreendermos o nosso presente, temos de falar com as pessoas, com os industriais ou ler as memórias dos diplomatas. A sociedade imunda se lança, como um único Narciso, à contemplação de sua imagem trivial. Estranhas aberrações se produzem. Ela logo será totalmente suplantada e corrompida, graças à aliança natural que encontrará na tolice da multidão. Dia a dia a arte perde respeito por si mesma, se prostra diante da realidade exterior. Os sentidos são úteis quando não se superestima seu valor. Por vezes esse vício atinge até mesmo homens que têm talento, mas que o desonram através de uma mistura adúltera.

Esquecemos a fonte da juventude, da mais espontânea poesia. A extensão, a continuação de uma arte que é verdadeiramente do nosso tempo, da nossa geração, que dá a mais sensível contribuição de transformação do mundo, de seres, do tempo, coisas que correm o risco de serem perdidas ou esquecidas no fluxo de imagens. O patético eremita, trancado no seu quarto a centenas de quilômetros de distância da cena que sente como sua vida real é o produto final de um século de desenvolvimento que saiu do acampamento para o atual consumidor solitário do espetáculo. Será possível supor que um povo não terá, ao largo de certo tempo, particularmente diminuída sua faculdade de julgar e de sentir o que há de mais etéreo e mais imaterial? Obras de autênticos autores.

Que homem digno do nome de artista e que diletante verdadeiro confundiu um dia a arte com a indústria? Tenho poucas certezas, uma delas é que o perigo é real.”

 

 

* Colagem composta estritamente por períodos retirados de três textos: Estado do cinema (2020, Olivier Assayas), Um projeto de televisão (1935, Rudolf Arnheim) e O público moderno e a fotografia (1859, Charles Baudelaire).

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